segunda-feira, 3 de maio de 2010

Dos pontos de ônibus da vida

Dentre os muitos diálogos de que participamos ao longo de nossos dias, existe sempre algum ou alguns que nos marcam de alguma forma, seja para o bem ou para o mal. Em geral, afirmações como “hoje chove” pode ter um peso pequeno quando você está no elevador e pode ser marcante quando você está longe de casa sem o guarda chuva (pobres curitibanos), mas frases como “O Michael Jackson morreu”, “O Coxa ganhou” ou “hoje não tem aula” sempre arrancam alguma exclamação impressionada, ora por pavor ora por alegria incontida. Reconhecendo a dificuldade em se determinar quais frases possuem tal efeito, ignorando a natureza positiva ou negativa do impacto causado, proponho-me a definir aqui algumas regras que, julgo, funcionam em qualquer situação, embora não sejam únicas e invictas.

Apesar de não se poder definir o que causa impressões fortes nas pessoas, já que cada um valoriza fatores diferentes a diferentes pesos, talvez seja conveniente definir alguns inícios ou finais de frase interessantes, que, em geral, chamam a atenção do interlocutor, já que as frases que exigem essas premissas e conclusões costumam ser de peso relevante à maioria.

É comum se exigir a atenção das pessoas à sua fala com a expressão “veja bem”. Utilizar esse termo no início de uma resposta, por exemplo, faz com que você pareça entender algo do que está dizendo (apesar de provavelmente não entender) e compra tempo para pensar em uma resposta, criando alguma expectativa. Apesar disso, os finais costumam ser catastróficos, uma vez que se nota por fim que você, de fato, não sabe o que diz. Começar uma réplica com “não é tão simples assim” costuma ser eficaz em se tratando de um debate quando você tem a absoluta certeza de que, e quer deixar claro que, seu interlocutor está se esmerando em não fazer sentido, e também funciona quando você não sabe o que dizer depois mas só quer invalidar a afirmativa alheia. Expressões similares a “Mas se você parar para pensar” adicionam, por sua vez, um ar reflexivo e divagador a qualquer porcaria que se diga em seguida. Para se conseguir a atenção exclusiva de uma mulher, “você viu que” produz resultados surpreendentes.

Frases terminadas com a indagação “entende?” costumam exigir um aval. Não se está meramente concluindo uma idéia, mas se exigindo da parte atingida pelo diálogo uma opinião de cunho didático: você está a dizer algo complicado e quer se certificar de que o interlocutor esteja a par da informação completa. A resposta natural é “sim”, já que poucos assumem que não entenderam absolutamente nada e, também, não estão interessados em ouvir tudo novamente. A versão agressiva é “estou sendo claro?”, mas esta deve ser utilizada com cuidado. Existem casos, porém, em que a didática não é o único fator posto em questão, mas a opinião alheia. Nesses casos, “concorda?” é simples e direto. É eficaz, já que, à semelhança de “entende?”, exige apenas “sim” ou “não”, implicita que você continuará falando independente da concordância ou não do interlocutor e arranca um “sim” da maior parte das pessoas, já que em geral ninguém está interessado em ouvir seus argumentos. O aposto mais eficaz em chamar atenções, apesar disso, é menos elaborado, mais universal e não exige respostas. Qualquer frase terminada com “porra” atinge diretamente a alma das pessoas, sem pausas no enganoso ouvido: esse fim de frase garante que frases triviais ganhem peso e agressividade de afirmações inflamadas e argumentos acalourados. “Você viu o Marcos, porra?”, “Hoje é terça, porra”, “O Coxa ganhou, porra” e “Me faz um sanduíche, porra” são excelentes exemplos.

Porém, minha intenção aqui não é me deter no impacto gerado em conversas corriqueiras, e sim dar atenção a alguns momentos a que alguns cientistas não estão acostumados. Aspirantes a físico, assim como eu, entendem o impacto gerado por perguntas iniciadas com “você que faz física”. Esses são os momentos em que o físico faz sinal para o ônibus errado, lembra de compromissos importantes e inadiáveis ou arranja qualquer forma de fugir do assunto, como “a mãe vai bem?”, “será que chove?”, “Cê ouviu a história da gripe” ou “Orra, velho, cê viu o jogo do Coxa?”. Apesar das admiráveis técnicas desenvolvidas por alguns para esquivar de certas perguntas sobre física, o final costuma ser o mesmo: a pergunta é feita, o desastre é exposto e o físico fica tentado a simular um ataque cardíaco. Antes que se pense que o físico é um ser anti social ou antipático (maldade dizer isso), vamos voltar ao começo da história.

Tudo se inicia no papel, esse que tudo aceita. Tudo mesmo. Se eu tentasse agora fazer por escrito afirmações de baixo calão sobre a vida sexual da senhora sua mãe, por exemplo, o papel seria o último a me questionar. E assim começa o drama. Assim como o papel aceita tudo, o leitor muitas vezes engole tudo, principalmente quando não entende nada. Imagine o seguinte exemplo, temperado com o sabor do absurdo para salientar a triste realidade:

Alguém afirma que o uso de Hidrogênio como combustível nada mais é que transferir o problema da geração de energia para as usinas elétricas. “Seu carro não gera poluentes, mas a usina a carvão que alimentou a eletrólise dele emite, e pra cacete”. Então alguém, possuído da grande revelação, decide unir essa informação ao fato de que o Sol é uma grande usina descontrolada de fusão de hidrogênio, e interpreta que esse é o combustível dele (começa muito bem, pois afirma que há combustão no Sol). E se o combustível dele acabar? Então se escreve que manter o Sol queimando nada mais é que transferir o problema de sua geração de energia para às usinas elétricas. Quem sabe não convém que ao invés de hidrogênio o Sol não utilize outra fonte de energia... como a solar, por exemplo? Se isso é escrito em uma revista de fofoca científica (como aquela que é interessante pra caramba ou a que tem nome de filósofo da idade média) com os termos técnicos adequados (um “foi descoberto”, alguns “alarmante”s e um “agora sabemos que”), um monte de figuras bonitas, várias páginas de falatório desconexo, palavras difíceis (alguns termos comuns à física teórica), alguns gráficos pizza ou, ainda mais eficaz, gráficos tridimensionais e algumas figurinhas de átomos, o efeito final é um leitor tão confuso que, impressionado com o texto (e com o fato de não ter entendido absolutamente nada), afirma com um sorriso esclarecido “Hummmmmmm, é assim que funciona então”.

Assim começa a saga da informação científica mal repassada. A palavra é escrita, impressa impiedosamente no papel, que de nada tem culpa, e levada à mão do seu vizinho que, um dia, resolve, no ponto de ônibus, pôr seus conhecimentos à prova com o novo conhecimento de física avançada correlacionada a questões ambientais. E o físico entra num impasse.

O físico inexperiente tem esperanças de solucionar o engano e trazer o pobre leigo à luz. “Veja bem, isso aí não faz sentido, pois” e em seguida, após breves palavras, nota que seu vizinho, além de não ter entendido nada, conclui decepcionado que você está desatualizado das grandes descobertas. O físico mais experimentado no tortuoso caminho das conversas de ponto de ônibus sabe que, nessa hora, a resposta que encerra qualquer discussão é “pois é, interessante, né?”. O problema é que, em geral, seu vizinho não se contenta com isso. Ele quer explicações. Ele tem certeza que em uma conversa informal com um físico de verdade, tudo que ele precisa saber será esclarecido, pois só o que lhe falta é entender as palavras difíceis. Aqui, então, cabe entender o que faz as frases do representante dos físicos precisam conter para impactar seu interlocutor.

Ao contrário da conversa coloquial, aqui você está assumindo a posição do especialista no assunto. Termos como “veja bem” são excelentes e, mesmo que você não saiba o que diz, impressionarão. Porém, iniciar a fala com “não é tão simples assim” é coroar de antemão a fala com os louros da vitória. Note-se também que não estou falando de dizer algo certo ao seu vizinho, e sim de deixar seu vizinho satisfeito com uma resposta e seu orgulho em pé como cientista em formação, e tudo isso antes do ônibus chegar.

Lembre-se de utilizar alguns termos matemáticos misturados à explicação física. Termos geométricos como “cúbico”, “quadridimensional”, “geodésica”, “braquistócrona” ou “enantiomorfismo” seguidos de uma explicação breve o suficiente para não ser clara enriquecem a explicação. Adaptar certos jargões também surte bom efeito: o “É fácil ver que” pode se tornar “assim, fica bem simples notar que”, passando a impressão de que você está se esforçando para trazer seu vocabulário ao coloquial e tornar a explicação acessível. Por fim, para concluir o diálogo, um “enfim, é complicado” te faz parecer simpático com a confusão gerada em seu pobre vizinho. Citar o surgimento de algum termo obscuro na equação de Schrödinger pode parecer clichê, mas garanto bons resultados também. Mas ainda assim, não economize: quanto menos ele entender, melhor será a explicação. Mas se você está lidando com alguém mais esclarecido, por favor, explique que ele anda lendo muita porcaria. Seja como for, não use o termo “porra” aqui.

Eu digo tudo isso com esperança de ajudar, mas desejar com força que o ônibus chege antes da pergunta ser concluída não é um crime. Se você der sorte, ele já está chegando. Nesses casos, levantar a sobrancelha o máximo possível, fazer um olhar distante mordendo o lábio e dizer “hummmmm, é complicado” já é suficiente.

Em casos extremos em que o vizinho não entende pra que raios serve o seu curso, não se desespere. Apenas concorde com tudo e, caso indagado, diga “ainda não estudei isso”. Se te perguntarem “então você vai fazer a melancia quadrada?”, não diga “não, meu curso não faz isso”, pois isso sugere que você vá explicar em seguida o que seu curso de fato faz. Ao invés disso, experimente algo como “Um grupo de pesquisa japonês já está trabalhando nisso”. Para casos gerais, tenha em mente algum conhecimento básico de ergonomia e anatomia, assim você não precisa explicar nada estranho se seu vizinho vier com perguntas desse cunho acreditando que você faz educação física.

Caso tudo falhe, simule o ataque cardíaco.