sexta-feira, 17 de junho de 2011

Conto de fadas

Era uma vez uma vila como qualquer outra, sem nada especial e sem ninguém notório. Próxima a essa vila jazia quase imperceptível em meio ao mato não arrancado uma casa, um dia pertencente a uma adorável velhinha.

Dois caminhos ligavam a vila à humilde casa, um longo e um curto. O curto, embora tendo metade da extensão do outro, era morada de um certo lobo trans sexual mal intencionado com um apetite voraz por velhinhas e moças de chapéus vermelhos. Embora sua estranha preferência pudesse servir de alento a alguns, os mais cautelosos evitavam esse trajeto por garantia.

Diz um antigo conto entre os vilões que certa feita, chapeuzinho vermelho pretendia visitar sua avó, que por coincidência era a simpática velha da casinha. Descuidada, a moça, cujo nome sugere que ela utilizava o adereço tão apreciado pelo canino, decidiu por tomar o caminho mais curto, ignorando os avisos de sua mãe de que deixaria de pagar seus estudos se andasse por aquelas bandas, pois aquele caminho era reservado para os de índole duvidosa.

Por fim, o destino da pobre donzela é até hoje discutido na vila com entusiasmo nas rodas e nos bares, onde o velhinho saudoso conta sobre seu avô caçador que matou o lobo e resgatou de sua barriga tanto moça (com chapéu) e velhinha (cujas roupas vestiam o animal - tente não imaginar em que condições ela saiu); o cético bêbado discute que a garganta do lobo não permitiria que ele comesse duas pessoas sem mastigar e algum babaca que já bebeu muito mais que é de bom tom faz ameaças de denunciar o falecido avô do velhinho ao IBAMA, acreditando estar sendo engraçado. Quando percebe que ninguém riu, inventa alguma frase de duplo sentido entre a espingarda do caçador e o gorro de chapeuzinho vermelho. Quando nota que não agradou mesmo assim, começa a chorar o término de seu namoro.

O lobo está devidamente morto, independente da versão verdadeira da história antiga. Mesmo assim, por precaução, uma fita zebrada foi passada para fechar o caminho e impedir que outros sigam por aquele trajeto de lobos comedores de mocinhas inocentes. Não que houvesse chance de ocorrerem novos ataques, poucos se preocupavam de verdade com isso. A reputação do caminho era ruim, coisa de moças de chapéu vermelho sem consideração pela família e pelas tradições de seguir o caminho certo.

Talvez o lobo nunca tenha existido de verdade, mas não faz diferença. De vez em quando, alguns curiosos passam escondidos pela fita zebrada, sem o conhecimento de suas famílias. Outros acharam o caminho divertido e para lá seguiam para suas noites de diversão. Notando que nada demais havia naquele trajeto, decidiram questionar com as autoridades de sua cidade o que havia de errado por ali.

As respostas costumavam ser sempre as mesmas: "O caminho certo é o longo, e sem mais perguntas.", "Deus fez o caminho longo para nós e o curto para os ímpios", "As folhas são verdes demais" e "Ê, rapaz, eu não sabia que você gostava dessas coisas não". Assim foi até o dia que alguém exigiu seus direitos de seguir o caminho que quisesse sem ser julgado por isso.

Começou com um ato simbólico: o prefeito mandou alguém colocar um galho em pé no chão segurando a fita para cima, representando a posição da prefeitura de nunca ter proibido a passagem. A fita ficou por ali, afinal ela nunca incomodou ninguém e haviam já 2 gerações que estava lá, amarela e preta e dizendo que ali não era um bom lugar.

Maliciosos, Bullies se posicionaram nas duas saídas do caminho e esperavam os que por ali se divertiam aparecerem para apontar e rir. Outros mais radicais carregavam barras de metal e pedaços de pau consigo e batiam naqueles que eram estranhos demais para andar pelo caminho certo.

Algum dia, um novo prefeito decidiu que aquilo estava passando dos limites (primeiro porque não se faz isso com uma pessoa e segundo porque não havia mesmo nada errado por ali - mas as más línguas ainda dizem que ele se esgueirava por ali depois que sua esposa dormia). Deixou bem claro perante a cidade que não gostava do caminho, mas que quem quisesse andar por ele deveria ser deixado em paz para seguir o caminho que quisesse.

Assim, como novo ato simbólico, ordenou que um moleque de 12 anos chutasse o galho (para descobrir que alguém já tinha feito isso há muito tempo) e deu a um dos usuários do caminho uma tesoura e uma máquina fotográfica para que ele e seus amiguinhos cortassem a fita e publicassem o ato num jornal local.

Os bullies naturalmente não pararam. A fita foi cortada, é claro, mas os pedaços de pau dos bullies não perdiam seu desempenho por isso. Injuriados, os usuários do caminho decidiram se entregar à sociedade. Diziam "Eu ando por ali sim e ninguém tem nada com isso", organizaram passeatas do "Orgulho do Caminho Mais Curto", criaram comunidades no Orkut e pediram para que fosse aprovado um projeto de lei que criminalizasse as pauladas.

Esclareço aqui que as pauladas sempre foram crime, independente do caminho ser bom ou não. O que era necessário era uma manifestação da justiça no sentido de dar uma atenção especial a quem gostava do caminho mais curto. Em breve, dezenas de pessoas passaram a ignorar a repressão de suas famílias e o preconceito dos amigos e passaram a frequentar aquele caminho.

Os bullies foram presos e as pessoas foram incentivadas a aceitarem os frequentadores do caminho mais curto. A história da Chapeuzinho Vermelho tornou-se um tabu e o velhinho foi processado por sugerir que algum dia um lobo andou por ali, afinal tal afirmação serve para recriminar os frequentadores do caminho. O velhinho argumentava dizendo que não falou nada sobre quem anda por ali, apenas uma história antiga, mas foi mandado à prisão de qualquer forma. Os livros didáticos deveriam excluir alusões e piadas sobre caminhos mais curtos, e quem fizesse um trocadilho envolvendo caminhos curtos e lobos estava passivo de processo por preconceito.

  
Em poucos anos, não havia mais mato no caminho mais curto. A casa ao final foi derrubada porque era considerada muito retrô, e se você mencionar que por qualquer motivo acha que há uma árvore no caminho mais comprido mais bonita que outra do caminho mais curto pode ter o mesmo destino do velhinho.

Todas essas mudanças são vitais e bem vistas pelos famosos da vila, em nome da manutenção da democracia e da liberdade de expressão, e se você discorda disso deve ser apedrejado em praça pública por ser um porco preconceituoso. 

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Sobre action figures e o fim do mundo

Conforme o tempo passa, a lógica do convívio social muda.

É interessante notar, por exemplo, o quanto os hábitos de vestimentas mudaram da idade moderna para cá. Antes, os ternos eram a roupa de passeio, o trajamento utilizado para qualquer situação que lhe retirasse do aconchego do lar: desde o encontro com os pais da namorada até a solução do pequeno impasse com seu vizinho. Por sinal, o impasse com seu vizinho, hoje resolvido com alguma gritaria ou o chamado da polícia, antigamente era resolvido com dez passos de distância e um único tiro. Alguns consideram que evoluímos, outros não têm tanta certeza.

Hoje evitamos o terno. Por sinal, poucos conhecem o termo "Traje de passeio", e se referem ao trajamento como "roupa social", já que ele agora serve para ocasiões especiais, como casamentos. Você não acerta as contas com seu vizinho usando um terno; em geral as pessoas preferem fazer isso de bermuda e chinelo, e ao invés de um tiro algumas bordoadas passam o recado. E seu sogro e sogra te consideram bem vestido se ao primeiro encontro você utilizar uma calça jeans, um tênis limpo e uma camiseta que não mostre uma folha de maconha. 

Mas as roupas não foram as maiores mudanças. O vocabulário sofreu distorções muito mais absurdas, e esse com certeza é o que muda com maior frequência. Expressões hoje comuns ao seu meio serão consideradas caretas em menos de dois anos. "Massa", uma gíria comum à minha infância, é careta. "Bacana" é um bocado careta, e "Careta" é extremamente careta.

Seu gosto musical será considerado arcaico dentro de uns quinze anos. Aliás, se você tem algum gosto musical provavelmente ficará chocado com as mudanças no gosto musical da maioria dentro de poucos anos e passará o resto de sua vida dizendo o quanto as músicas eram melhores no seu tempo, do mesmo jeito que seu pai faz com frequência. Temos certa resistência a mudanças.

No tempo citado dos ternos e duelos, homens economizavam por anos para comprar uma bengala de qualidade para ressaltar seu bom gosto e elegância, mesmo que isso significasse não mobiliar a casa. Há décadas, o maior gasto era com o terno vindo do bom alfaiate, a roupa que serviria como seu cartão de visitas por onde quer que fosse, e sua família não pouparia esforços para te ver bem vestido e, assim, se orgulhar. Hoje, de alguma forma bizarra, o status de alguns é definido por aparelhos de telefone celular que algum comerciante brasileiro apelidou MPx (substitua 'x' por algum número que satisfaça sua imaginação), vendidos em dez parcelas sem juros pelas casas Bahia e postos para tocar música de gosto duvidoso sem fones de ouvido no ônibus coletivo, almas caridosas ansiosas por compartilhar suas músicas gratuitamente com desconhecidos que estão indo trabalhar e anseiam desesperadamente pela chance de ouvir seu funk ou seu techno.

Tenho minha própria resistência a mudanças. Não gosto muito dos hábitos dos mais jovens de utilizar calças cuja cintura chega no joelho, rejeito com meu coração as franjas com chapinha do público juvenil de sexo dúbio e, com minha alma, reservo meus mais otimistas e sinceros votos aos proprietários dos MPx que ouvem música sem fone de ouvido no ônibus que tenham uma morte lenta por asfixia de desodorante Axe.

Talvez seja por isso que minha alma tem tamanha dificuldade em aceitar como vindos de mentes racionais certos conceitos que hoje são tão bem aceitos na grande massa. Por exemplo, eu poderia questionar "Que raios significa aquela máscara da Lady Gaga?", "Who tha fuck is Justin Bieber?" ou "O que aconteceu com o elástico das suas calças?". Mas ao invés disso, há outra questão que tem me tirado o sono e que gostaria de trazer à reflexão: Que diabos é a porra do "Orgulho Nerd"?

Sempre fui considerado nerd. Em minha infância, isso tinha um motivo muito bem definido, e envolvia meu hábito de jogar video game, tirar notas altas no colégio e não saber conversar com mulheres. Eu era chamado "nerd" por meus colegas não irem com a minha cara e gostarem de me ver irritado, simples assim. Um termo pejorativo, nascido para insultar e que eu rejeitava com todas as forças.

Hoje, me explique quem puder, algum rapaz coloca uma camiseta do Senhor dos Anéis, decora falas de Darth Vader e lê a obra de C.S. Lewis e, na mesa com os priminhos mais novos, bate no peito dizendo "sou nerd", como quem quer dar um bom exemplo de conduta aos seus aprendizes.

Não nego que não vou com a cara do povo que aderiu a essa onda que acha cult ser nerd, o que os encaixaria em minha definição anterior, mas acredito que alguma distorção dolorosa aconteceu por aqui. Em certa situação, fui questionado "Você não viu toda a série do Star Wars? Que tipo de nerd é você?".

Tal questionamento poderia levantar uma reflexão por si só. No momento, me limitei a responder "Do tipo que apanhou dos colegas na infância, ganhou o primeiro video game aos 2 anos e arrumou seu computador pelo telefone". A resposta satisfez e minha "imagem" como "nerd" foi preservada. Mas o questionamento permaneceu o mesmo.

Sou considerado um nerd, e explico que não é por meu gosto por RPG. Não tem a ver precisamente com o fato de preferir Linux a Windows ou por ter escolhido Física como minha graduação. Sou nerd desde infância por minha inaptidão ao convívio social. E talvez novamente por meu conservadorismo, nunca considerei minha dificuldade em conversar com meus vizinhos um motivo de orgulho.

Mas novamente, isso é uma questão minha, meu conservadorismo maltratando minha capacidade de aceitar certas mudanças sociais. Talvez seja apenas a idade manifestando seus sintomas. Talvez seja apenas uma mudança natural no significado da palavra "nerd" ou alguma estratégia de marketing muito inteligente.

Por fim, o fato é que sou um nerd. Da mesma forma que isso não fará você necessariamente gostar de mim, saiba que isso não me faria necessariamente gostar de você. E se você é fisiologicamente definido como um ser humano do sexo masculino e, por qualquer motivo, usa franja preta passada no ferro (a conhecida de toda mulher, a "chapinha"), a alcunha adequada não é "nerd, e sim "emo".

Antes que eu comece a falar sobre a mudança pela qual os emos passaram (de criaturas tristes que achavam cult cortar os pulsos, transformados em criaturas coloridas que acham cult falar como se tivessem alguma deficiência mental muito séria), encerrarei o texto por aqui. E se você tem um MPx, compre um fone de ouvido. Você descobrirá entre as vantagens o fato de o fone de ouvido emitir um som de muito maior qualidade e definição que o auto falante de seu celular, e eu usufruirei da outra grande vantagem: o fato de não precisar ouvir sua música.

Caso contrário, sonhe com frascos de Axe acoplados a um inalador.