sexta-feira, 27 de julho de 2012

As peripécias de um país laico

Todas as áreas de atuação dos animais humanos têm seus jargões. Em alguns momentos, os jargões são motivados por uma simplificação da linguagem, afinal, tratar a "Primeira lei da termodinâmica" é cognitivamente mais suscinto que a mencionar como a "Lei universal da conservação de energia para sistemas térmico/mecânico/químico/quântico/eletromagnéticos na forma clássica"; a primeira forma vai me dizer o que você quer dizer, enquanto a segunda forma me fará perguntar "Mas heim?".

Em certos ambiantes, não conhecer o jargão dificulta consideravelmente a comunicação. Mencionar a uma vendedora de uma loja de eletrônica que eu queria "Uma câmera que faça em torno de 60 quadros por segundo em formato digital" resultou em uma sobrancelha levantada e a impressão de que ela falava se dirigindo a um retardado mental. Após uma série de explicações, fui corrigido com a frase "Ah, o nome disso é 'frêimis'. Essa câmera resolve". Excluindo o fato de que ela provavelmente se referia à terminologia "Frames per second", que é inglês para "quadros por segundo", e o fato seguinte de que a câmera que ela me indicou era analógica (formato PAL, outro jargão que indica que a câmera resolve 25 quadros por segundo), concluí que se eu conhecesse o jargão da vendedora de câmeras da rua 24 de maio teria economizado em torno de dez minutos de conversa fútil.

Mas também existe o momento em que o jargão apenas serve para te caracterizar como especialista e não se fazer entender pelos leigos. Quando eu falo na anteriormente citada "primeira lei da termodinâmica" em determinados contextos, estou esclarecendo que sei do que falo. Se em um trabalho eu menciono que "utilizei um sensor CCD" estarei sendo mais elegante que aquele que diz "utilizei uma câmera digital com sensor CCD", embora ele tenha mencionado o "digital" e tenha sido mais preciso que eu em seu vocabulário.

Algo comumente confundido com os jargões são os "chavões". O chavão linguístico nada mais é que um vício, em alguns casos tão comum que pode ser tido por slogan. Alguns consideram que nosso falecido político Enéas Ferreira Carneiro, conhecido apenas por Enéas, ao declarar "Meu nome é Enéas", não estava meramente esclarecendo seu nome àqueles que pegaram a propaganda pela metade, mas usando um chavão que o destacasse na massa de candidatos. Em discussão prévia a respeito da comunicação enquanto especialista, mencionei um chavão comum à minha área, nada específico mas bastante eficaz quando não queremos responder uma pergunta: "Não é tão simples assim".

Assim como chavões se tornam slogans, slogans se tornam chavões, e para quem gosta de exemplos temos alguns slogans bonitos que não têm mais muito efeito por algumas pequenas distorções histórias e terminaram assim, como "Ordem e progresso", "democracia", "liberdade, igualdade e fraternidade" e "mas e os direitos humanos?".

Mas há um chavão em especial que tem chamado minha atenção nos últimos tempos, utilizado em contextos questionáveis: "cada um acredita no que quer". Em momentos fui levado a discordar, afinal eu não acredito no que quero e sim naquilo de que fui convencido. Eu não quero acreditar na relatividade e sua tendência desagradável de implicar que eu não posso viajar no tempo para o passado, mas fui convencido.

Mas no contexto onde essa frase é comumente utilizada, ela é precisa. Esse é o chavão mais comum para encerrar discussões religiosas que existe, e é o mais eficaz. Na dúvida, na falta de argumentos, quando os ânimos começam a se acalorar, apelamos para a liberdade religiosa, que poderia ser traduzida como "A constituição me garante liberdade religiosa", mas já tem o chavão "Cada um acredita no que quer", que é muito mais elegante que dizer "você vai para o inferno por pensar assim" e, posto sob o ponto de vista adequado, pode implicar em tratar uma opinião como "liberdade de expressão" e a outra como "ofensa". E é fato, o religioso acredita no que quer, afinal, escolher "um deus ou outro", "uma tradução ou outra" ou "um livro sagrado com verdades subjetivas interpretado da forma que convem ao contexto ou outro" não depende de convencimento, e sim de disposição cultural e desejo de acreditar.

Nossa constituição foi de fato escrita sob o pretexto de que, entre outros, cada indivíduo é livre para acreditar no que quiser. Você não será preso por acreditar em fadas, ovelhas que nascem em árvores, extra-terrestres que desenham círculos em plantações ou amigos imaginários que te amam e prezam por seu bem estar. Já que somos livres para essas coisas, podemos também ser livres para assumirmos publicamente nosso credo.

O efeito final disso foi um novo chavão: "O Brasil é um país laico". Aprendi isso no colégio, acredito que muitos colegas tenham ouvido esse termo em algum momento de suas vidas. Não busco uma definição formal para o jargão "laico", mas traduzo como aprendi: O governo e partições públicas de nosso país não têm religião oficial, e como tal não devem pregar oficialmente a favor de ou realizar em seus contextos oficiais qualquer ritual proveniente de qualquer religião. Isso garante que o evangélico não precise tolerar em seu ambiente de trabalho um ritual de umbanda, essa que eles tendem a considerar como fruto de obra de seu inimigo maligno. Se o cidadão quer um espaço para seu ritual, deve separá-lo para tal, independente do governo, afinal sua liberdade garante isso.

Acredito que esse chavão de país laico tem perdido um pouco do charme nos últimos tempos. Como todos sabem, há uma guerra ostensivamente declarada entre organizações religiosas e "o senhor desse mundo", o anteriormente citado inimigo maligno, responsável por muitas das mazelas do mundo, como as drogas, a maldade e o coração de pedra. Essas organizações guerreiras têm garantido pelo mesmo governo que declara laicidade algo chamado "imunidade tributária". Traduzindo em miúdos, instituições religiosas são livres de impostos. Algumas movimentam milhões de reais em dinheiro todos os meses (ou semanas, ou dias).

Há também uma certa "bancada cristã". Os mesmos guerreiros instruem seus membros, livres para opinião e para acreditarem no que querem, a direcionarem seus votos, definindo assim, por uma vantagem numérica considerável, diversos políticos que assumirão cargos oficiais. Afinal, o que há de errado em utlizar a liberdade de escolha para doutrinar pessoas a apoiar suas ambições? Assim, o país sem religião oficial toma decisões oficiais sob a óptica de uma religião.

Pois bem, cheguei à conclusão de que não vivemos em um país laico. Um país laico não aceita rituais religiosos para abrir seções de câmara. Um país laico não permite que uma instituição religiosa alcance influência política e riqueza sem pagar impostos. Tive um amigo que tinha uma cadela da raça "pastor alemão" chamada "Laica" (no caso, a palavra deriva de lobo), e tenho certeza de que ela não introduzia rituais religiosos na casa do rapaz; então, meu novo chavão é "Já vi cães mais laicos que esse país". Mantem o ambiente de bom humor e poupa os ouvidos do interlocutor de um outro chavão que luta para sair de minha boca: "Laico é tua bunda".


Todos têm uma religião no país laico, e "não ter uma religião" viola diretamente esse axioma fundamental para a manutenção coerente de um ambiente civilizado, então ateísmo é considerado religião em quase todos os contextos sociais, e como a maior ferramenta para propaganda do ateísmo é a ciência, posso deixar uma sugestão: imunidade tributária para o desenvolvimento científico e uma posterior "bancada acadêmica" na assembléia. Universidades privadas sem posicionamento religioso poderão se declarar atéias e serem consideradas instituições religiosas, e indústrias nacionais emergentes que realizam pesquisa também. Assim, ateus poderão ensinar e pesquisar suas coisas atéias, realizando seus "rituais" ateus em seus microscópios e câmaras de plasma com respaldo legal para não pagar impostos, e de quebra acontece algo útil, tipo desenvolvimento e progresso motivados pelo custo reduzido. O problema é que, no mercado de chavões, esses dois parecem ter mais a ver com exportação de grãos e a copa do mundo de 2014.