sexta-feira, 4 de abril de 2008

Guadalupe

Dentre todos os acontecimentos do decorrer do tempo, sejam eles registrados historicamente ou não, sempre conhecemos algum deles que mais nos chocam, como, por exemplo, alguns se chocam com as guerras mundiais, outros com a revolução francesa, alguns com o experimento que mostra elétron como partícula, alguns outros ainda com o experimento subseqüente que mostra o elétron como onda e até certas pessoas que se chocam com a morte do Brizola. Eu pessoalmente me choco com o Big Bang, se é que ele aconteceu. Imagino a explosão em meio ao nada, a expansão do espaço, o "surgimento" da matéria, o colapso de estrelas, o condensamento de planetas, a solidificação de crostas, a formação de um planeta específico que chamamos Terra, o surgimento da vida, o surgimento da humanidade, a evolução do pensamento e da tecnologia, a formação da sociedade, as revoluções, a descoberta da América, mais revoluções, a nossa bela cidade de Curitiba... tudo isso, para, inevitável ou não, encararmos a barbárie que a vida cotidiana nos apresenta dia após dia. Não, não estou falando do Interbairros II dessa vez, estou falando de algum lugar esporádico em nossa bela cidade, o famoso terminal do Guadalupe, a belo antigo terminal rodoviário intermunicipal de Curitiba que hoje abriga diversos ônibus que alimentam bairros de periferia e cidades satélite de nossa modesta metrópole.

Antigo abrigo das pessoas que esperavam seus ônibus para abandonarem a cidade e das que nela chegavam, hoje tal terminal é um curioso local freqüentado pelas figuras mais inusitdas, estranhas, ébrias e, acima de tudo, pouco confiáveis das regiões centrais desse lugar que, apesar das propagandas pelo país, também tem seus contratempos sociais. Lá, o observador ocioso, mesmo que distraído, sempre consegue captar algum fato inesperado como encontros efusivos entre ébrios, congestionamentos, brigas ou, se tiver sorte, o desaparecimento da própria carteira.

O momento que narro aqui é outro daqueles que me fazem refletir a respeito do nosso surgimento e de nosso desenvolvimento enquanto sociedade. Descia eu distraído de meu ônibus "Sitio Cercado", um carro das populares linhas "Ligeirinho", os ônibus cinza de poucas paradas que utilizam o formato de portas com pontes e atravessam a cidade. O Sitio Cercado, em especial, é um daqueles que, em certos horários, desafiam a capacidade humana de auto-compactação e de resistência aos odores de seus semelhantes. Por sorte, não é comum encontrar ônibus dessa linha com o aviso fixado "Janela lacrada - veículo equipado com ar condicionado", afinal, eu ainda valorizo meus pulmões (além de que não gosto de depender dos postos de saúde). Estava eu no momento em que retomava meu volume original após desembarcar, caminhando em direção ao meu modesto local de trabalho, quando um homem se levantou de um degrau. Tinha ele uma expressão agressiva e uma forma peculiar de caminhar entrelaçando as pernas e tinha, à mão, um recipiente plástico de gargalo enforcado em cujo interior era visível um fluido transparente e em cuja casca era estampado um rótulo frugal qualquer, uma típica "garrafa de cachaça", certamente a bebida preferida de muitos daquela região.

Caminhou o homem até o meio fio e levantou sua garrafa, olhando atentamente para o homem ao outro lado da rua, não com a intenção de convidar a um brinde ou de oferecer um "gole", mas visivelmente na iminência de arremessá-la com força para baixo. E foi o que fez.

Lançou o homem a garrafa contra o asfalto. Não era uma garrafa de vidro de forma alguma, mas com certeza sabia quebrar: os pedaços de plástico se espalharam pelo asfalto tal como a bebida que o recipiente carregava, formando uma bela mancha ao chão que poderia ser confundida com água não fosse o suave aroma de cachaça que se confundia com o suor do homem, um odor característico dos bares mal freqüentados por onde se encontram pessoas filosofando, cantando e, muitas vezes, se pronunciando imponentemente de uma forma muito característica e pouco fácil de ser entendida.

Espedaçada sua garrafa, o homem apontou a um homem que se encontrava ao outro lado da avenida em tom de ameaça, uma legítima intimidação, um convite ao acerto de uma provável desavença (que seria consumado caso o homem ao outro lado da rua soubesse quem era seu "oponente"). Com a presença e o protesto devidamente impostos, retornou o homem ao seu lugar ao degrau de entrada de uma loja fechada e retomou seu antigo sono com uma expressão característica do homem que cumpre um grande objetivo de vida.

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